O delinqüente juvenil Alex de Large (Malcolm McDowell), do clássico “Laranja Mecânica”, era obcecado por ultraviolência. O filme de Stanley Kubrick, feito em 1971, expunha a preocupação diante de um futuro social que se anunciava cada vez mais violento. Em termos cinematográficos, de um ponto de vista visual, a era da ultraviolência chegou em 2002, anunciada por um longa-metragem francês polêmico e instigante: “Irreversível” (Irreversible, França, 2002), do cineasta argentino Gaspar Noé.
Algumas pessoas intitulam as perturbadoras imagens que recheiam o segundo trabalho de Gaspar Noé de violência gráfica. Outros preferem chamá-las de violência extrema. O rótulo não importa. É fato que o cinema ainda tivera coragem para exibir imagens tão explícitas, tão chocantes, tão impressionantes, até que o diretor ousou fazê-lo. Por causa disso, “Irreversível” foi recebido entre tapas e beijos pela crítica. Alguns amam, outros odeiam, mas ninguém sai imune de uma sessão deste longa-metragem.
Noé tomou algumas liberdades pouco comuns, como iniciar as filmagens com um roteiro de apenas três páginas, estimulando ao máximo os improvisos dos atores do filme (em determinada cena, ao ser apresentado a uma pessoa, o protagonista responde que seu nome é Vincent, nome real do ator). O linguajar coloquial e a fluidez dos diálogos estimulam a platéia a encarar o filme como uma experiência informal, bem próxima da vida real.
Além disso, o diretor preferiu filmar no formato 16mm (as câmeras profissionais utilizam uma bitola mais larga, de 35mm), para poder usar um equipamento mais leve. Com isso, Noé passou a ter liberdade para filmar em locações reais, com a câmera na mão, e fotografar todo o filme em tomadas longas, de forma a criar grandes blocos narrativos sem cortes. Tudo isso funciona a favor do planejamento do diretor, pois mergulha o filme em um ambiente extremamente realista: as ruas e o submundo gay de Paris. As duas seqüências-chave acontecem em um clube sadomasoquista e em uma passagem subterrânea da capital francesa.
Tudo isso pronto, e Gaspar Noé foi filmar então as duas cenas mais polêmicas. Muita gente abandona a projeção na metade, a maioria chorando e/ou enjoada. Que atire a primeira pedra quem não vira o rosto ou fecha os olhos, ao menos durante alguns momentos das longas seqüências.
O esmero técnico e narrativo de Gaspar Noé é tão grande que não pára por aí. Ele montou todo o filme em ordem cronológica inversa, de trás para a frente, como em “Amnésia”, mas de forma ainda mais radical (até mesmo os créditos aparecem no início). Além disso, o objetivo de atordoar e deixar a platéia desconfortável é perseguido com tal afinco que a câmera manual utilizada na primeira e longuíssima seqüência, que tem mais de 30 minutos e mostra os dois homens entrando num clube gay para procurar o estuprador, simplesmente não permite compreender com clareza qual o eixo vertical e qual o horizontal. Em outras palavras, a platéia é colocada na mesma posição (e sensação) da dupla, que vê tudo rodar, como alguém com tontura.
Em outro requinte de crueldade, Noé acompanha o balançar da câmera com um ruído baixo e grave, semelhante a um ronco, gravado na freqüência de 28 Hz. Se exposto a essa freqüência durante algum tempo, um homem pode ser acometido de náuseas e tontura. Por isso, há um motivo fisiológico para que a platéia do filme fique realmente nauseada com as imagens violentíssimas que vai presenciar, após o bombardeio de meia hora de imagens tremendo, luzes estroboscópicas girando (tudo acontece dentro de uma boate, lembre-se) e um ruído surdo que incomoda até a alma.
Agora, as perguntas que não querem calar: que tipo de reflexão um filme desse tipo pode gerar? Há alguma mensagem na tortura consentida a que o espectador se propõe assistir, quando compra um ingresso para “Irreversível”? A meia hora final, que abandona as experiências radicais para apresentar diálogos e situações que evocam idéias existencialistas (as idéias de Albert Camus parecem particularmente pertinentes), justificam intelectualmente o show de horrores da primeira parte do filme?
São perguntas complicadas de responder. Os méritos cinematográficos de Gaspar Noé são inquestionáveis, mas a proposta ética e estética permite muitos questionamentos. Por tudo isso, muita gente sai do cinema pensando que “Irreversível” não passa de um filme gratuito e vazio, enquanto outros acreditam que as reflexões a respeito do slogan defendido pelo filme – “o tempo destrói tudo” – são pertinentes.
Isso faz parte da magia do cinema: cada espectador aplica suas próprias experiências de vida às imagens que aparecem na tela e as traduzem para um repertório particular de causas e efeitos existenciais. Dessa forma, o filme pode fazer sentido para você – ou não. De um jeito ou de outro, trata-se de uma experiência perturbadora.
Texto retirado do site Cine Repórter ( www.cinereporter.com.br ) escrito por Rodrigo Carreiro